Foto: Shutterstock |
E por três razões. A razão óbvia é que desrespeitar um pedestre – seja em pensamentos, palavras, atos ou omissões – significa atingir a sua própria condição. Neste sentido, não existe “o pedestre”, falado em segunda ou em terceira pessoa. Quem deixa de conceder espaço e tempo para um pedestre ou, atingindo o cúmulo, o ameaça com seu veículo, fomenta uma cultura de trânsito que em algum momento poderá reverter sobre si próprio.
Depois, porque a ética da convivência comunitária nos lembra que os membros mais frágeis de um conjunto social devem ser protegidos por todos os demais membros. E este ensinamento está grafado, com justiça, no § 2º do Art. 29 do Código de Trânsito Brasileiro: “[...] os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres”. Portanto, o ciclista tem que estar atento também a quem ele pode machucar, e não apenas a quem pode lhe machucar.
E, por fim, mas não o menos importante, porque ciclistas e pedestres estão no mesmo pacote dos enjeitados. Ciclistas e pedestres, considerados estorvos do trânsito, são como penetras na festa da indústria automotiva, das petrolíferas e das empreiteiras. Não precisamos pesquisar relatórios de orçamentos públicos para comprovar que a esmagadora maior parte do dinheiro público beneficia e estimula a mobilidade motorizada individual, deixando migalhas para quem não pode ou não quer ter carro.
Nos meios politizados do ciclismo brasileiro é ponto consensual que os ciclistas devem respeitar a prioridade dos pedestres e não invadir os espaços a ele destinados. Mas no dia a dia do trânsito, apesar da situação já ter melhorado, a convivência ainda precisa ser bastante ajustada.
Basta ficar observando uma faixa de pedestres que cruza uma ciclovia para confirmar que os ciclistas, geralmente, nem diminuem a velocidade para esperar um pedestre atravessá-la. E bicicletas ainda são frequentemente avistadas sendo despreocupadamente conduzidas sobre passeios públicos e calçadões.
É claro, é preciso relativizar. Por exemplo: quem tem coragem de mandar uma criança inexperiente pedalar no leito de uma avenida? E, por outro lado, quem tem a cara de pau de mandar uma mãe sair da ciclovia e empurrar o seu carrinho de bebê em uma calçada arrebentada? Mas, embora seja defensável o bom senso tanto de “invasores” quanto de “invadidos” para avaliar como agir ou reagir a cada situação, o importante é não perder o foco: a cidade precisa mudar para evitar tais situações.
Disto tudo se podem concluir três coisas: uma, que ciclistas e pedestres precisam de educação viária tanto quanto os motoristas, pois eles demonstram ser todos legítimos filhos do trânsito brasileiro, educados mais para a competição do que para o compartilhamento. Duas, que o gestor público isenta-se – poderíamos dizer, criminosamente – de responsabilidade para com a segurança de ciclistas e pedestres e, com isso, joga uns contra os outros. E três, que a cultura brasileira está de tal maneira entorpecida pelo imaginário da supremacia automobilística que um motorista não consegue sequer entender que o desprestígio aos pedestres é uma ofensa à própria dignidade.
Embora o modo de deslocamento a pé seja o mais antigo e universal, a despeito dos benefícios da caminhada para a saúde, para a cidade e para a natureza, e apesar do atraso medieval das nossas cidades para acolher os pedestres, a modalidade ainda carece de mais pessoas e organizações especificamente envolvidas com a causa. Esta lacuna acaba sendo parcialmente preenchida com a incorporação de suas pautas pelas organizações de base comunitária, pelas organizações de ciclistas e, como não poderia deixar de ser, pelas organizações de pessoas com deficiência.
Falando pelos ciclistas organizados, eles já não se deixam reduzir ao “bicicentrismo”, ao “cicloexclusivismo”. Compreendem que a excelência da mobilidade urbana do ponto de vista social e ambiental só será alcançada com a priorização do transporte público em integração com as modalidades ativas de deslocamento. Mas ainda existe uma distância quantitativa e qualitativa entre tais agentes sociais e a massa que formiga nas ruas. Sejamos realistas, sem o incremento da intervenção política por parte dos próprios ciclistas, dos próprios pedestres e dos próprios passageiros coletivos, o modelo de desenvolvimento urbano aplicado pelas sucessivas gestões públicas ainda continuará desprezando-os.
As piores faltas que ciclistas e pedestres cometem não são aquelas cometidas no espaço público de circulação, mas aquelas cometidas no espaço público de participação política. Não que devam ser tolerados os desrespeitos recíprocos no trânsito, mas eles não diminuirão por si sem a alteração da cultura de convívio humano.
Fonte: Revista Bicicleta por André Geraldo Soares
0 comentários:
Postar um comentário