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sexta-feira, 29 de maio de 2015

Entrevista do mecânico da bicicleta de médico morto, que também já foi atacado com facadas

Jovem foi uma das 2.183 pessoas que, segundo a OAB do Rio de Janeiro, foram atacadas a faca no estado, em 2014.

Foto: Divulgação
Um tipo de crime que está assustando o Brasil provocou mais uma morte esta semana. Um médico foi assassinado a facadas enquanto andava de bicicleta, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Acontece sempre da mesma forma: assaltantes empunhando facas e vítimas atacadas covardemente.
Do céu... 
“Você anda de bicicleta, você consegue escutar só sua respiração. E você se sente livre”, diz Jorge Felipe Leão, mecânico de bicicleta.

Ao inferno... 
Fantástico: O que é andar de bicicleta hoje?
“Medo, medo da liberdade que eu não posso ter”, afirma Jorge.

Quatro facadas, a morte de perto, e sequelas para a vida inteira.
“Eu perdi a capacidade de ar, eu não posso correr como antes, eu não posso mais pedalar como antes”, revela Jorge.
Jorge está entre as 2.183 pessoas que, segundo a OAB do Rio de Janeiro, foram atacadas a faca no estado, em 2014. Desse número, 225 morreram, o que dá 1,23 mortes a cada dois dias. Este ano, do fim de abril para agora, foram ao menos dez ataques.
Relembre alguns deles:
30 de abril: um homem de 52 anos leva quatro facadas em um ponto de ônibus, no centro da cidade.
8 de maio: uma mulher é esfaqueada em Laranjeiras.
17 de maio: uma turista vietnamita é atacada em frente ao Museu do Paço Imperial, no Centro.
19 de maio: o médico Jaime Gold é assassinado a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas.
20 de maio: uma mulher é esfaqueada em uma passagem subterrânea, em São Conrado.
Sexta-feira (22): uma chilena leva uma facada no pescoço enquanto tomava banho de sol na Praça Paris, na Glória.
O mais violento dos crimes foi o da Lagoa.
“Foi ação criminosa bárbara, cruel, em que o médico, o Jaime Gold, não teve sequer a oportunidade de se defender”, diz o delegado Rivaldo Barbosa.
O médico de 57 anos foi morto a facadas por um grupo de adolescentes.
“Eles se atracaram, esse que desceu da garupa para tomar a bicicleta e fizeram movimentos de golpe, de soco. Foi muito rápido. Durou mais ou menos de 20, 30 segundos”, conta uma testemunha.
Um rapaz de 16 anos, que já tinha 15 passagens pela polícia, foi apreendido e apresentado como suspeito do assassinato. Ele nega, mas confessou que rouba bicicletas. Perto da casa dele, os policiais encontraram várias. Nenhuma delas era a do médico.
Jaime Gold era cardiologista. Trabalhava na mesma universidade onde estudou e fez residência, a Federal do Rio de Janeiro. Ele se dedicava a tratar da população pobre atendida pelo hospital universitário.
“Várias vezes ele chegava em casa dizendo que paciente não tinha dinheiro para comprar medicamento, não tinha na farmácia, e ele dava o dinheiro, o medicamento para o paciente”, lembra a ex-mulher de Jaime, Márcia Amil.
“Jaime era uma pessoa que todo dia brincava com as pessoas, estimulava a todos a fazerem atividade física, era capaz de levar um colega pra comprar uma bicicleta”, conta o médico João Manoel Pedroso.
Uma dessas colegas é a doutora Vânia. Ela comprou uma bicicleta por insistência de Jaime. Mas com uma recomendação expressa.
“Ele disse pra que eu não andasse sozinha e ele então foi assassinado”, comenta a médica Vânia Silva.
A própria Vânia já havia sido atacada na Lagoa Rodrigo de Freitas.
“No primeiro mês eu já fui abordada, caí próximo aos carros e isso assustou a pessoa que estava me abordando e a bicicleta não foi roubada, mas me fez aposentar a minha bicicleta muito precocemente. Parece que essa crise chegou agora na Zona Sul, mas ela já é vivenciada pela gente aqui há 20 anos”, lembra Vânia.
Filho de um pedreiro e de uma dona de casa, Jorge sabe bem o que é isso. Por coincidência, ele é funcionário da loja onde o doutor Jaime consertava a bicicleta.
“Eu estava dormindo e o meu gerente mandou uma mensagem falando: 'o Jaime, o ciclista que foi esfaqueado na Lagoa é o Jaiminho, o nosso cliente'. Eu já não consegui mais dormir porque eu fiquei pensando: ‘mais um? Até quando?’”, conta Jorge Felipe Leão, mecânico de bicicleta.
Imediatamente lembrou do ataque que ele havia sofrido em outubro de 2014. Estava voltando para casa, na bicicleta recém-comprada a prestação, quando foi abordado por um grupo de adolescentes no Aterro do Flamengo. Um deles saltou sobre o rapaz.
“Ele pulou já cravando uma faca nas minhas costas. Aonde eu caí no chão, tomei a segunda facada e, quando eu vi, pude contar cinco menores. Todos estavam armados. Não adianta você reagir, 'perdeu, me dá tudo, me dá o celular, me dá tudo que tá no seu bolso’. E eu tava entregando tudo. E tomei a terceira facada aqui na costela. Eles pegaram as minhas coisas e foram. Quando eu levantei para pedir ajuda, para ver quem estava do meu lado, o que estava na garupa da minha bicicleta, ele olhou pra trás, aí ele gritou: ‘eu não acredito que você levantou, você não aprende né?’ Ele saltou da bicicleta que eu comprei, com a faca na mão e correu na minha direção. Eu só fiquei olhando para minha morte. Ele me agarrou por trás e foi ele que deu a quarta facada, que perfurou meu pulmão. Ele cravou e ficou: ‘você vai aprender, você vai aprender’. E ficou tentando rasgar. Eu sobrevivi, mas e aqueles que não sobreviveram? Aqueles que deixaram filho, deixaram esposa? Aqueles que deixaram toda uma vida pela frente?”, lembra Jorge.
Um médico de classe média, com uma longa carreira dedicada à saúde pública. Um jovem pobre que dá duro para vencer na vida. Que duas pessoas tão diferentes tenham sido vítimas da mesma brutalidade mostra um ataque indistinto ao que a cidade pode oferecer de mais democrático a moradores e visitantes. A possibilidade do encontro, da convivência nos espaços públicos está agora ameaçada pelo medo.
Fantástico: A senhora sairia de bicicleta na Lagoa?
Kátia Mecler, psiquiatra forense: De jeito nenhum, de jeito nenhum, eu me sinto com medo também.
A psiquiatra forense Kátia Mecler vê uma clara mudança, ainda sem explicação, do comportamento dos assaltantes que usam a faca como arma.
“O que está me surpreendendo muito agora é a questão da intenção de ferir também, é uma total desvalorização da vida”, afirma Kátia.
Portar uma faca não é crime. Mas a OAB do Rio de Janeiro defende que o porte de arma branca seja incluído no Código Penal e proibido nos casos em que se constatar a intenção de agredir.
Um projeto de lei proibindo o porte de faca, e depois revisto para incluir exceções, chegou a ser apresentado em 2004. Mas até hoje não foi votado.
“Nós temos hoje uma epidemia de crimes com armas brancas, essa epidemia deve ser enfrentada dentro da lei, nós devemos dar instrumentos a autoridade pra que ela possa retirar das ruas aqueles que portando armas brancas cometem crimes contra o patrimônio e contra a vida”, diz Felipe Santa Cruz, presidente da OAB/RJ.
Para o movimento Viva Rio, é uma medida que não resolve.
“Eu só acho que não vai resolver nada. Se mais lei resolvesse, o Brasil era um país tranquilo, seguro. Falta nesse país um programa sério para essa questão da rua, da população de rua e da garotada que vai crescendo em condições onde a opção pela violência pelo crime na rua é uma opção interessante”, diz o antropólogo Rubem César Fernandes.
No meio de tantas tragédias, um agradecimento. Jorge foi ao quartel dos Bombeiros que o socorreram no dia do ataque.
“São os meus anjos, são os meus anjos”, agradece Jorge.
Aconteceu o inacreditável: o jovem desenganado, internado em estado grave, sobreviveu. Ao escapar da morte, o mecânico de bicicletas decidiu mudar de profissão. "Eu vou fazer um curso técnico de enfermagem e vou fazer prova para o Corpo de Bombeiro, porque eu quero salvar pessoas que estiveram no mesmo lugar que eu", revela Jorge.


Fonte: g1.globo.com/fantastico

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