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domingo, 26 de janeiro de 2014

Europa: gentileza faz a diferença no trânsito

Um balanço da experiência de pedalar por nove países europeus, durante sete meses


Após 7 meses de pedal e quase 9 mil quilômetros rodados por 9 países europeus, agora de volta ao Brasil é chegada a hora de fazer aquele “resumão” da viagem e tentar compartilhar as impressões gerais que tive nesse período, principalmente no que tange a mobilidade humana.

O simples fato de poder atravessar boa parte da Europa ocidental utilizando apenas a bicicleta já diz muita coisa, mas ficar só nisso seria manter uma discussão muito superficial. Não poderia seguir com este texto sem tentar entender o que realmente possibilita que uma pequena formiga como eu consiga se deslocar sozinho tão facilmente por tamanha distância, em um ambiente estranho e cultura extremamente diversa da nossa, com diferenças linguísticas, no relevo e no clima, com uma moeda supervalorizada em relação ao real, entre tantas outras novidades.

Já nos primeiros quilômetros, pedalados em território holandês, comecei a acreditar que a infraestrutura cicloviária era o principal fator que levava aquela região a ter uma cultura ciclística tão forte. Em algumas partes do país, novos loteamentos estão sendo construídos onde antes era o mar, uma prática comum na Holanda há muitas décadas, e o que se vê muitas vezes é a implementação de ciclovias e calçadas antes mesmo da pavimentação das ruas. Claro que não é assim em toda parte, mas esse exemplo só poderia existir em uma sociedade que entende a importância do pedestre e do ciclista em sua dinâmica.

Com o tempo e as distâncias percorridas, comecei a notar a forte presença dos trens, dos VLTs, de uma infinidade de canais navegáveis e de uma rede de ciclorrotas capaz de me conduzir por muitos quilômetros de bicicleta, sem me fazer gastar nenhum centavo para isso.

Aos poucos minha euforia com relação à estrutura cicloviária do país foi passando e eu já podia enxergar o óbvio: a bicicleta era apenas um dos modais, que assim como os outros, dotada de ótima infraestrutura e grande demanda por parte dos cidadãos. Então comecei a entender que o buraco era mais embaixo, ou seja, não é apenas a bicicleta que é levada a sério, mas o transporte como um todo, seja ele coletivo ou individual, público ou privado.

Em poucos dias de pedal já entrava na Alemanha e mesmo após cruzar a fronteira, o impacto não foi muito grande. Claro que a língua mudou, assim como mudou a arquitetura, os produtos nas prateleiras do supermercado entre tantas outras coisas, mas o conforto e a segurança ao pedalar, continuaram em alto nível. Entrei no novo país pela região chamada Renânia do Norte-Vestfália (Nordrhein-Westfalen), passando pela Baixa-Saxônia (Niedersachsen), Bremen (Bremen), Hamburgo (Hamburg), Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental (Mecklenburg-Vorpommern), Brandenburgo (Brandenburg), Berlin (Berlin) e Saxônia (Sachsen), antes de entrar na República Tcheca.

Fiz boa parte dos deslocamentos neste país por pequenas estradas cortando fazendas, compartilhadas entre tratores e bicicletas, sempre muito bem sinalizadas. Algumas vezes cheguei a pegar estradas de rodagem, junto com carros de passeio, traillers, ônibus e caminhões com limite de velocidade de 60, 70 ou 80 km/h, permitidas para ciclistas, de vez em quando sem acostamento. Assim mesmo a viagem era tranquila, os motoristas respeitam demais os ciclistas e em nenhum momento me senti ameaçado. Assim foi também na República Tcheca e antes mesmo de entrar na Áustria estava tudo mais claro: nos países por onde pedalara, os motoristas não são apenas condutores que respeitam os ciclistas e outros condutores, mas pessoas que respeitam pessoas. Ouvi da boca de moradores das cidades pelas quais passei até ali que no trânsito eles jamais tomam atitudes que possam colocar outros indivíduos em risco.

Concomitante ao comportamento mais gentil no trânsito, notei uma presença muito grande de crianças, idosos e cadeirantes nas ruas, calçadas, no comércio e praças, ora sozinhos, ora acompanhados, mas sempre em condições de acessar equipamentos públicos sem depender de ninguém. Então ficou claro que a gentileza no trânsito e a infraestrutura que estes países construíram só foram possíveis com o respeito ao indivíduo e suas necessidades, e não apenas iniciativas voltadas a um pequeno grupo, mas para o maior número possível de pessoas. Assim eu consegui entender que a Educação no Trânsito que estava vendo agora não era resultado de uma cartilha bem elaborada, campanhas de conscientização ou um sistema de avaliação absurdo para conseguir uma habilitação, e sim do comportamento dos indivíduos com relação aos outros e ao espaço que estão inseridos, neste caso as ruas.

Poderia me alongar muito na discussão da valorização da vida, do respeito ao próximo e da fundamental importância que estes fatores têm na dinâmica de qualquer cidade, mas certamente este é um assunto que merece muito mais reflexão. Agora sei que estas são as premissas básicas para a construção de um ambiente coletivo, sem as quais não existe infraestrutura capaz de suprir sua deficiência, e lamento que muitos aqui no Brasil ainda não tenham percebido isso. Nesse sentido é quase impossível fazer uma comparação de cidades europeias com os centros urbanos brasileiros, já que não partimos das mesmas premissas; e banana se compara com banana, laranja com laranja. Mas se não podemos comparar as cidades brasileiras com as europeias, que tal colocarmos em foco o nosso comportamento, principalmente quando dividimos com outros o espaço, seja ele público ou privado?

É a partir desse conceito que entendi a ocupação do espaço público e a mobilidade humana nestes meses de viagem. Em maior ou menor escala o compartilhamento das vias, o respeito aos pedestres e outros pontos fundamentais na construção de uma sociedade inclusiva se repetiam também na Áustria, Suíça, França. Espanha, Itália e Portugal, embora um pouco menos nestes dois últimos países. A idéia de um espaço construído para atender às necessidades das pessoas e o entendimento da coisa pública como algo de todos explica, pelo menos em parte, o sucesso de cada um dos modelos de transporte público, que não deve ser medido exclusivamente pela redução do tempo de deslocamento, como vemos muitas vezes por aqui.

Atravessei a Áustria e entrei pelo sul da Alemanha, seguindo o rio Danúbio, passando por Munique e chegando ao Bodensee, onde cheguei na Suíça. O nível de organização suíço, considerando a infraestrutura e a sinalização, não tinham precedentes nesta viagem até o momento. Engraçado viajar por um país tão pequeno com um território super fragmentado, onde em uma parte se fala alemão, na outra o italiano, além do francês e uma pequena faixa onde se fala o romanche. Assim mesmo o país tem uma unidade muito forte, especialmente no que respeita ao transporte e à qualidade de vida. Depois disso entrei na Itália e logo me sentia como se estivesse muito próximo do Brasil, sensação que se repetiria em Portugal. Tanto os italianos quanto os portugueses são extremamente apressados e salvo alguma exceção, são tão imprudentes no trânsito como nós, brasileiros.

Poderia dizer que este é um comportamento típico dos povos de origem latina, mas seria uma injsutiça com a França e a Espanha, que não oferecem as mesmas condições para pedalar do que a Holanda, Suíça e Alemanha, por exemplo, mas ainda assim estão anos luz à frente de Portugal e Itália. A França não chega a ser completamente ciclável, mas o povo francês é respeitoso, principalmente no que se refere às liberdades individuais e aos direitos humanos. O respeito ao próximo é onipresente, ou se existe algum tipo de preconceito ele é bem disfarçado. Fato é que passei pelas regiões do Vale do Jura, Borgonha, Ile de France, Central, Pays de la Loire,Poitou Charentes, Aquitânia, Midi-Pirineus e Languedoc Roussilon e além de pedalar bons trechos por ciclovias ou rotas ao longo de rios e canais, quando tive que pegar estradas não encontrei nenhum problema. Em menor escala, isso aconteceu também na Espanha, onde passei pela Catalunha, Aragón, La Rioja, Castilla y Leon e finalmente a Galícia, antes de chegar em Portugal.

Foi somente quando cheguei à Galícia, onde a língua e os costumes do povo local são muito mais parecidos com os de Portugal do que da Espanha, é que passei a sentir uma certa agressividade no trânsito, o que na minha opinião é mais desgastante do que subir uma montanha dos Alpes ou dos Pirineus. Pedalar em um ambiente onde você se sente ameaçado o tempo todo cansa, gera uma tensão enorme nos braços, nos ombros e nas costas, além da pressão psicológica e do medo. Falo por experiência própria, é mais fácil subir uma grande inclinação quando você está tranquilo e seguro do que pedalar por pequenas elevações sentindo que a qualquer momento alguém vai jogar toneladas de metal em cima de você!

Chegando em Portugal, a sensação é que eu estava mesmo me preparando para voltar ao Brasil. Ainda é mais fácil pegar a estrada de bicicleta em terras lusitanas do que no nosso país tropical, mas assim mesmo não é seguro. Até aquele momento não me lembrava de ouvir buzinas e xingamentos de motoristas que não queriam dividir seu espaço com ciclistas, mas em Portugal eu ouvi. De certa forma me senti um pouco em casa, e sabia que não só por uma questão linguística ou geográfica, mas lá no fundo eu estava mais próximo do Brasil. Seria leviano dizer que nosso comportamento nas ruas é uma herança da colonização, mas qualquer semelhança também não pode ser considerada coincidência. Após todos estes meses viajando sozinho, em contato direto com o ambiente e com as pessoas, tive muito tempo para refletir, e cheguei à conclusão de que se não temos recursos, tecnologia ou infraestrutura capaz de suprir nossas necessidades, podemos pelo menos começar com o mais importante: o respeito ao próximo e o compartilhamento saudável das vias.

Fonte: Mobilize

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