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“Pedalar no Centro é muito diferente. Vimos muitos ciclistas usando capacete, coisa mais linda, e cumprimentavam a gente sem nos conhecer”, conta o estudante. “Era estranho. Isso não acontece aqui, na nossa região.” Apesar da admiração, David achou que pedalar nos bairros centrais é mais arriscado do que na periferia. “Sentimos que tinha mais carros, ônibus e caminhões, que nos respeitavam menos. Aqui, no bairro, as pessoas se conhecem mais e por isso o respeito é maior.”
A maioria dos Exploradores Urbanos é gente que ganhou gosto pela bicicleta ao usá-la como meio de transporte. David começou aos 14 anos, quando foi fazer aulas de futebol em uma escola no bairro da Lapa. Como não tinha dinheiro para ir de transporte público, decidiu ir pedalando na companhia de alguns amigos. Pouco a pouco, foi se formando o grupo que explora São Paulo em bicicletas que nem possuem marca. A maioria é customizada por eles, que pintam os quadros e trocam as peças não pela praticidade ou eficiência, mas para ser mais bonita. O cuidado com a beleza das magrelas já gerou até problemas para o grupo.
“A gente gosta muito de pedalar até a Freguesia do Ó, mas os moleques do bairro tentam roubar as nossas bicicletas porque elas são bonitonas. Na última vez que fomos, eles conseguiram roubar a de um amigo meu. Aí tivemos que recorrer ao chefe da malandragem aqui, do nosso bairro, que foi lá e recuperou a bicicleta para a gente”.
No Jardim Paulistano, a maioria das famílias tem renda per capita inferior a meio salário mínimo. Muita gente usa a bicicleta em seus deslocamentos por pura falta de recursos para pagar o transporte público. Mas isso não impede que haja apaixonados pelas magrelas, como David e seu grupo, que continua crescendo. “Semana que vem, um primo meu de 12 anos vai juntar-se a nós numa subida ao Jaraguá. A mãe dele já autorizou”, comemora David. “Se você perguntar aqui para um desses garotos se eles gostam mais de mulher ou de bicicleta, pode ter certeza de que eles vão responder que é a bicicleta”, garante.
Inversão de papéis
A imensa maioria dos ciclistas do Brasil pedala nas periferias das grandes cidades: sem capacete, sem ciclovia, muitas vezes sem asfalto, sem preferência no trânsito. Em São Paulo, segundo uma pesquisa feita pelo Metrô, 7% dos ciclistas são de classe A e B – ou seja, 93% são C, D e E. Os bairros paulistanos onde mais se pedala ficam todos nas periferias das zonas Norte, Leste e Sul.
Se pudesse, o comerciário Márcio José dos Santos, 26 anos, optaria mesmo é por um automóvel. Márcio pedala até Santo André, onde estuda administração de manhã. “Meu sonho é conseguir um financiamento pela universidade para poder comprar um carro”, diz. Quando contamos que fizemos o contrário, abrimos mão do carro para usar a bicicleta como transporte, ele ficou admirado.
“Esse é um fenômeno interessante”, diz o advogado e professor universitário Odir Züge Jr., 42 anos. “Nas periferias, o pessoal usa a bicicleta por necessidade e sonha em ter um carro, enquanto no centro os motoristas cansaram de perder horas atrás do volante e têm optado cada vez mais pela bicicleta para se locomover.” Odir é ciclista desde 1999. É com a magrela que ele se locomove pela cidade, passeia por ela e a explora. “Quanto mais na periferia, menor a fiscalização, e mais gente acaba descumprindo as regras de trânsito”, explica. “É comum ver carros sem condição de uso, com o farol quebrado, um vidro ou até uma porta faltando”, diz. No centro expandido, certamente esses veículos seriam apreendidos, mas, na ausência de fiscalização eles circulam livremente.
“Nesses locais, com poucos fiscais e pouca sinalização, acaba imperando aquele fator cultural de o maior dominar o menor no trânsito”, diz. Essa falta de segurança para pedalar em áreas periféricas de São Paulo, segundo ele, é potencializada pelo fato de que ciclistas não precisam de uma formação para conduzir a bicicleta. “Daí, é comum se guiarem por um bom senso rasteiro, achando, por exemplo, que pedalar na contramão é mais seguro”, diz. O advogado explica que pedalar na contramão pode dar uma falsa sensação de segurança porque os ciclistas estão vendo os carros, mas, em caso de acidente, a velocidade do carro e a do ciclista são somadas e o impacto é muito maior.
160 a 200 quilômetros por dia
O trabalho costuma ser arriscado: fazer entregas em São Paulo sobre duas rodas. Pelo menos, sem um motor, o risco é um pouco menor do que o que os motoboys correm, por causa da velocidade mais baixa. “A gente trabalha na paz, não tem essa pressão por entrega. Pedalo na manha”, diz Sérgio da Silva. É pedalando que ele ganha – e vive – a vida. Competidor de ciclismo desde 1999, ele vai de bicicleta todos os dias até a Carbono Zero, empresa de bike-courier, onde trabalha como entregador durante oito horas. Depois, ele vai treinar.
“Pode ser um rolê até Juquitiba pela rodovia Régis Bittencourt, até Jundiaí pela rodovia dos Bandeirantes ou até Mauá pelo Rodoanel”, conta Sérgio, que pedala de 160 a 200 quilômetros por dia. “Comecei só no passeio, ia até o Parque do Ibirapuera e voltava. Daí fui entrando em competições e não parei mais”, conta. Sérgio poderia ir ao trabalho de transporte público ou de carro. “Só que eu ia gastar duas horas para chegar à Paulista, enquanto de bike são só 35 minutos”, diz o ciclista, que pedala à velocidade média de 40 km/h. Ele pode não ter começado a pedalar por necessidade, mas hoje certamente é a necessidade que o faz continuar optando pela bicicleta para chegar até o trabalho. Necessidade de não perder tempo.
Intermodalidade
Talvez só sendo, como Sérgio, um atleta, para se locomover da periferia até o centro de São Paulo de bicicleta todos os dias. O bairro do Capão Redondo, onde ele mora, fica na Zona Sul da cidade, a 25 quilômetros da região da Paulista, onde trabalha. A distância soa inibidora para optar pela magrela, mas é aí é que entra a intermodalidade com o transporte público. E o melhor lugar da América Latina para entender, de perto, o que significa isso é o imenso e excelente bicicletário da Associação dos Condutores de Bicicleta de Mauá (Ascobike). Cerca de 2 mil ciclistas por dia deixam sua bicicleta na Ascobike, que fica ao lado da estação de trem de Mauá, na Grande São Paulo. De lá até o centro de São Paulo, é preciso pegar o trem e fazer baldeação para o metrô, o que leva mais ou menos uma hora e meia, quando tudo dá certo.
O bicicletário fica aberto 24 horas por dia e tem vários horários de pico. O primeiro é às 5 e meia da manhã, quando começam a chegar os trabalhadores que precisam estar às 7 no serviço. Um deles é o balconista Manoel Francisco Cruz, 55 anos, que trabalha há 20 no bairro do Tatuapé. Antes, Manoel ia de ônibus até a estação Mauá, mas há cinco anos decidiu começar a pedalar até o local, motivado pela economia de tempo e dinheiro.
“Levo 20 minutos até aqui, de ônibus seria o dobro, e ainda economizo os R$ 2,90 da passagem na ida e na volta”, conta Manuel. Ele diz ser arriscado pedalar pelas ruas do centro de Mauá. No ano passado, foi atropelado enquanto ia para a Ascobike, o que gerou uma enorme resistência de sua esposa em concordar com as pedaladas diárias. “Ainda assim, vale a pena”, garante.
“Aqui, por essas bandas, é preciso ter cuidado mesmo, principalmente com ônibus e moto”, diz o pedreiro Severino dos Santos, 57 anos. Ele pedala todos os dias por 40 minutos até a Ascobike, onde chega às 5h30, e trabalha das 7 às 17h. “Gosto de chegar 6h30 na obra, para preparar o trabalho com calma, sem afobação”, conta. Severino pedala desde os 12 anos, quando morava em Caruaru, Pernambuco, e aos 19 se mudou para São Paulo. “A gente, que trabalha em lugares diferentes da cidade, percebe que na periferia o povo respeita menos o ciclista”, diz Severino. “Mas devagarinho e com muita luta a gente ‘véve’”, completa, enquanto se serve de mais um gole de café.
Às 5h50 da manhã, a atendente da Ascobike Ingrid prepara o terceiro galão de café do seu turno (que começa às 5h). Café, chá e pãozinho quente são cortesia da casa. Resolvemos nos servir de um gole, que desce ardendo na garganta e provoca uma careta. “Tá muito forte?”, pergunta Ingrid. “Coloquei seis colheres de café”, diz ela. “E outras seis de açúcar, né?”, perguntei, com a doçura ardendo na garganta. “Não, de açúcar eu coloco sete, porque o povo aqui gosta bem doce, pra ‘guentar’ o dia de trabalho”, responde, sorrindo.
Cabeludo, usando jaqueta de couro preta, Marco Reis entra na Ascobike empurrando sua bicicleta com guidão alto e dois espelhinhos retrovisores. O operário mal aparenta seus 62 anos. Funcionário de uma empresa em Rio Grande da Serra, município vizinho de Mauá, ele pedala até a Ascobike todos os dias há dois anos – começou para economizar o dinheiro da condução. Outros funcionários seguiram seu exemplo e a empresa decidiu fretar uma van para buscá-los todos os dias no bicicletário. “Agora a gente não gasta mais nada de condução e não temos o estresse de esperar pelo ônibus, todo mundo chega mais animado para trabalhar”, conta Marco.
Às 6h30 o sol nasceu e o comércio local em volta da Ascobike começa a levantar as portas. É nessa hora que abre a banca de jornais em frente ao bicicletário. Na vitrine lateral, os oito títulos diferentes de revistas que falam sobre novelas atraem as mulheres que começam a chegar de bicicleta.
“Sete da manhã começa o segundo horário de pico, o das mulheres”, conta Ingrid. É nessa hora que a auxiliar de enfermagem Tânia chega pedalando à Ascobike para seguir, de trem e metrô, até o Hospital das Clínicas. “A avenida Barão de Mauá é a mais perigosa aqui, na região, com muitos ônibus, mas mulher eles respeitam mais”, conta ela.
O terceiro horário de rush do Ascobike começa por volta das 8 da manhã, quando chegam de trem os trabalhadores do turno da madrugada – os tantos vigias que passam as noites nas ruas desertas da região central paulistana, zelando por uma precária segurança. Com o sol já alto, eles apanham as bicicletas e pedalam pelas ruas da periferia em direção de casa para finalmente poderem dormir, ao som dos passarinhos.
Fonte: Super Interessante
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