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segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Bicicleta, substantivo feminino

Podemos dizer, assim, que a bicicleta está para a mobilidade urbana como a mulher está para a sociedade.

Foto: shutterstock.com
A cena hoje comum de uma mulher pedalando, nem todo mundo sabe, só tornou-se possível porque houve mulheres que confrontaram os hábitos e as normas que as impediam de fazê-lo. Toda “mulher moderna” está em débito de reconhecimento e respeito com as mocinhas e damas que, no passado não tão longínquo, sofreram censura, repreensão e humilhação por sair às ruas guiando uma bicicleta.

A emancipação da mulher ainda não é plena nem aqui nem na maior parte do mundo, e os avanços foram conquistados com muuuita luta, doída luta, até letal luta, tanto organizada nas ruas, quanto individual nos lares. E ainda é preciso muito esforço para que a mulher consiga desvencilhar-se totalmente das crendices, sustentadas pelas instituições seculares, que já a mantiveram em situação de submissão e até sob violência, extremo este que, contudo, ainda persiste em muitas culturas contemporâneas.

Podemos dizer, assim, que a bicicleta está para a mobilidade urbana como a mulher está para a sociedade. Ainda vivemos situações em que a mulher é secundarizada e oprimida pelos cônjuges, pelos patrões e pelos gestores públicos; e a bicicleta ainda é desprezada e coagida pelos motoristas, pelos investidores e, do mesmo modo, pelos gestores políticos.

Hoje alcançamos a condição não somente dos homens poderem admirar as mulheres pedalando, mas das próprias mulheres poderem manifestar abertamente o mesmo sentimento pelos homens. Liberdade de movimento e liberdade sexual vieram juntas. Nesse tema, entretanto, nem tudo é charmoso: o olhar objetificante do machista ainda é comum e chega às raias do constrangimento e da violação. Não é nada incomum o assédio, as gracinhas, buzinadas e outras baixarias contra as mulheres, o que não apenas as ofendem, mas lhes causam riscos de acidentes.

A bicicleta permitiu à mulher ampliar seu horizonte ao lhe conferir autonomia de deslocamento. A bicicleta ajuda a ir mais longe e a chegar mais rápido, sem depender do favor ou da vontade de terceiros, sejam estes o marido, o pai, o irmão ou o filho. Ir ao trabalho ou à escola? Levar o filho na creche? Fazer compras? Tais funções sociais podem ser cumpridas com mais eficiência servindo-se de um veículo a pedal. Caminhar cansa? Estão pesadas as bolsas? O ônibus demora e é caro pra caramba? É para melhorar esse desconforto que existe a bicicleta!

Mas para melhorar as condições de uso da bicicleta pela mulher, são necessárias políticas públicas cicloinclusivas. Não que tratemos a mulher como sexo frágil, mas temos que reconhecer que a desigualdade de gênero ainda praticada na sociedade a coloca em desvantagem. Ainda prepondera para as mulheres a administração geral do lar, a responsabilidade com a prole, a dupla jornada de trabalho e a menor remuneração – portanto, é mais difícil para elas do que para os homens enfrentarem mais uma carga no trânsito. É dever da sociedade propiciar a inclusão feminina em todas as esferas da vida social. E protegê-las, sobretudo dos trogloditas que fazem do carro uma ferramenta de autoafirmação da sua masculinidade.

Mas há mulheres que não ficam paradas, esperando o mundo ao redor melhorar. Pelo contrário, vão às ruas, em número crescente, reforçando a demanda e até engrossando a pressão explícita, pelas estruturas de democratização do trânsito. Seja como transporte, nas pedaladas noturnas ou no esporte, cada vez é maior a participação feminina. E elas agregam não apenas quantidade, mas qualidade: quando não turvada pela cultura masculina, a feminilidade possui especificidades de cognição, sensibilidade e visão de mundo que harmonizam a cultura e tornam mais igualitárias as normas sociais.

A bicicleta foi, outrora, responsável pelo aumento da visibilidade social da mulher, ampliando sua presença no espaço público, de modo chamativo e até chocante. Agora a bicicleta reveste-se de outro significado, ao questionar padrões sociais de luxo, ostentação e desperdício cujos maiores ícones são as indústrias automotiva e petrolífera. Neste contexto, a bicicleta tem sido utilizada para desdenhar os padrões de beleza fabricados a cada estação e também para questionar a adesão das próprias mulheres ao estilo de vida que foi construído e ainda se desenvolve consoante aos valores machistas.

Não são todas as mulheres que incorporam a mentalidade difundida pelo mercado de que toda mulher independente quer ter seu próprio carro. Não é apenas uma questão de ponto de vista ou de liberdade de escolha. Trata-se de uma opção pela igualdade social: se é impossível técnica, econômica e ambientalmente que todo indivíduo possua um carro, sua posse pressupõe a disputa, a disputa que tem caracterizado historicamente a cultura patriarcal.

A igualdade social, assim com a igualdade de gênero, só é possível de ser alcançada com a vida simples, a comunidade frugal, a sociedade do baixo impacto, e a bicicleta é um símbolo nato deste projeto. Está na hora, amigos e amigas, de ouvirmos as mulheres que andam de bicicleta.

Fonte:  Revista Bicicleta por André Geraldo Soares

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