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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Jamais diga que eu não posso...

“A hora que eu comecei a pedalar, ali, só eu e a bike, durante as sete voltas passei sorrindo, porque minha felicidade de ser livre não cabia em mim”


Não, esta não é uma matéria sensacionalista que busca explorar o lado triste de uma situação a fim de dar-lhe valor maior do que contenha. Não é este o prisma com o qual olhamos para tal realidade. Mas bem que poderia, sim, ser mais uma matéria de como a bicicleta, com seus inúmeros e simples predicados pode servir de meio de transformação na vida de alguém.

A diferença das dimensões na foto acima ilustra, quase fielmente, o abismo entre o poder da máquina e o do ser humano. Neste momento, introspectivamente, devo ater-me ao segundo.

A máquina não tem vontade e não pode superar-se a si mesma. E este é o fio condutor do que passo a relatar. Enquanto Professor Sobre Rodas, realizando uma parceria com a Revista Bicicleta, como observador do mundo e de mim mesmo, levado mais pelas minhas forças emotivas do que físicas a recorrer com minha bike por entre as vidas de milhares de pessoas, tenho buscado interagir com os ambientes onde me encontro de forma a levantar dados, informações e percepções subjetivas sobre as transformações que a experiência da bicicleta traz ou leva para a vida de todos nós.

Desta vez, minha atenção estava voltada para uma jovem que centenas de vezes vi passar pelas ruas da cidade - balneário onde vivo, obstinada em sua trajetória, hipnotizada ao cumprir sua sina, de ir além, veloz, como se houvesse que resgatar algum tempo que se perdeu entre o ontem e o que já não nos cabe lembrar.

‘Navegando’ sua speed, ela já faz parte da paisagem urbana da localidade de Piçarras – SC. Por vezes, até é confundida com os elementos que compõem a praia, porque lá estão o céu, a terra, o mar, e ela, o vento. Acostumados com aquele vulto célere, poucos são aqueles cidadãos que filtram o olhar, buscando focar em uma das pernas, cuja cicatriz nada delicada vai desenhando uma marca indelével de dor que ocupa todo o membro. Para nós, cicatriz lembra dor. Para ela, lembra vitória.

Fernanda Katheline Pereira, nascida em 1978 (33 anos) em Curitiba, cursa hoje o Técnico em Enfermagem, profissão ironicamente escolhida para aplacar um pouco a dor dos outros.



Aos seis anos, Fernanda, ao cair bruscamente ao chão, adquiriu uma bactéria chamada Estafilococos. Pouco tempo depois, o caso se agravou evoluindo até chegar a uma osteomielite. Apesar de inúmeras pessoas passarem por um tratamento adequado, sendo curadas em pouco tempo, Fernanda passou um ano com gesso, o que depois foi admitido como um erro médico, fazendo com que o caminho a seguir fosse o da amputação, pois a necrose havia tomado conta da perna esquerda. Foi no hospital Pequeno Príncipe em Curitiba, que Fernanda conseguiu um diagnóstico acertado que veio a reparar, inicialmente, a dor, mas que não prometia milagres.

Fernanda passou por 12 cirurgias, sendo uma das primeiras crianças a fazer alongamento ósseo de 8 cm no fêmur esquerdo. Visto que a perna direita seguia seu curso de crescimento normal, foi necessária outra cirurgia na perna sadia a fim de que fosse interrompida sua evolução e que viesse a ficar ‘proporcional’ à esquerda. Anos mais tarde, aos 17 anos, outra cirurgia para alongamento ósseo na perna esquerda, desta vez, mais 4 cm na tíbia.

Quando chegou à fase adulta, entre os 24 e 25 anos, ainda em Curitiba, Fernanda experimentou pedalar, quando se arriscava desde sua casa até o Parque São Lourenço, coisa que não ultrapassava 20 minutos, mas que já se manifestava possível ainda que paralela às dores no joelho. Porém, isto não durou muito tempo.

Aos 28 anos, após mais de 10 anos de tratamento, descobriu-se que o joelho havia desenvolvido uma artrose degenerativa, com déficit de 11 graus, desgastando a cartilagem. Foi necessário extrair-se o cisto e a perspectiva era que Fernanda viesse a andar acompanhada, pelo resto da vida, por um par de muletas ou fazer a prótese.



A vontade é apenas uma das características que difere a essência humana das demais. Desde a adolescência, Fernanda havia desenvolvido uma paixão pelo nado, única atividade física que, ainda a contragosto da família e dos médicos, realizava, por ser de baixo impacto e que, por vezes, aplacava as dores. Bendita endorfina!

Das lembranças de uma bicicleta, Fernanda diz que recorda nitidamente de uma Cecizinha (dourada!!!) ganhada aos 10 anos, cujas únicas imagens gravadas são a de sua chegada no aeroporto e sua partida, numa venda precoce aos 12 anos.

Há dois anos, Fernanda trocou a metrópole Curitiba pelo Balneário de Piçarras, porém, não havia escola onde pudesse nadar em uma piscina olímpica, a fim de seguir praticando o nado.

A paixão pelo nado, mesmo assim, não foi abandonada. Veio a conhecer um grupo de senhores com mais de 60 anos que louvavam sua força de vontade ao buscar acompanhá-los nas braçadas pela orla, já que não há como negar e como esconder o conjunto de grandes cicatrizes presentes nas pernas. Um dia, um destes senhores convidou-a a participar das travessias a nado de Piçarras e de Penha. E lá veio o 2º lugar, em 750 m de travessia. Dor traduzida em vitória.

Em resumo, em 2010, Fernanda percebeu que conseguia pedalar pequenas distâncias sem sentir dor, e para continuar estudando, usava a bike ‘mequetrefe’ da mãe para cumprir o trajeto de casa ao curso. Resolveu comprar uma Caloi 10 para ter um pouco mais de desempenho, depois de ficar namorando a tal bike pelo site por mais de três meses. Vendeu, então, a máquina de costura e adquiriu a Caloi 10, um remake de um grande sucesso da marca, para os saudosistas como eu. Não é a toa que o apelido carinhoso que Fernanda colocou na bike é ‘Jenyzinha’, alusão a grande cantora de rock’n roll e blues dos anos 60, Janis Lyn Joplin.

Em novembro de 2010, Fernanda descobriu que consegue correr na praia, apesar de contrariar mais uma vez a vontade da família e dos amigos. Verificou que usando mais a ponta do pé esquerdo, minimizava certo impacto nas articulações restantes. Hoje, corre 6 km por dia, todos os dias.

Perguntei-lhe se quando adquiriu a Caloi 10, ela almejava chegar a algum resultado específico em performance, e Fernanda simplesmente me respondeu, com o mesmo sorriso de moleca de sempre, que não havia outro resultado que buscasse a não ser o de ‘ser livre’. “Cada vez que eu subo nela (bike), consigo me sentir normal em termos físicos. Estar praticando esporte em cima de uma bike sustenta minha ideia de ir mais longe. Eu não sei aonde eu quero ir... eu ainda não fui para aonde eu quero ir. Eu só quero ir. E que ninguém me diga que eu não posso, porque eu jamais digo que eu não posso!”, respondeu.

A doença degenerativa está, neste momento, estagnada. Fernanda pedala a velha Caloi apenas nas horas vagas, porque hoje é uma atleta federada pela FETRISC, a Federação de Triatlon de Santa Catarina. Pedala, todos os dias, no mínimo 20 e no máximo 50 km. Como, para mim, um professor deve estar ciente de seu inacabamento, e assim seguir buscando aprender a aprender, a fim de colher estas informações e crescer com sua experiência, convidei Fernanda para um pedal num sábado pela manhã.

Tentando me esquivar da tradicional pergunta ‘para aonde iremos?’ lhe disse que daríamos um rolé até ali, Balneário Camboriú. Zingramos entre as duas cidades, ora passando pela BR-101 ora pelo interior dos bairros e orla. Paisagens urbanas e não tão urbanas se desenhavam à direita e à esquerda, mas meu olhar atento estava voltado à alegria incontrolável de minha colega, porque ela jamais havia realizado algo parecido, e viemos a encerrar o trajeto de ida e volta, entremeando-nos por aqui e por acolá, somente após cumprir 84 km, voltando à orla de Piçarras.


E quem poderia dizer que ‘ela não pode’? Há menos de um mês atrás, no Duatlon da Palhoça, na Pedra Branca, na sua primeira competição de Duatlon, Fernanda sagrou-se campeã na categoria 30-34 anos. “A hora que eu comecei a pedalar, ali, só eu e a bike, durante as sete voltas passei sorrindo, porque minha felicidade de ser livre não cabia em mim”, confessou-me. Uma semana depois, Fernanda conquistou o Fast Triatlon no Espírito Santo.

Perguntei se ela se considera uma para-atleta. Imediatamente me respondeu dizendo que quando vê seus colegas de treino com amputações ou com paralisia cerebral superando o que muitos seres humanos jamais teriam forças para transpor, acredita que não tem o direito de se sentir uma para-atleta, ainda que ninguém discorde das dificuldades que carrega, as quais alguns chamariam de limitações.



Fernanda trocou o par de muletas pelo par de rodas. Trocou as dores, ainda atordoantes, pelo sorriso analgésico. Como disse ao início da matéria, as máquinas não têm vontade e nem sequer se superam. Agora, ao descobrir o cicloturismo, Fernanda quer ir cada vez mais longe. E não seremos nós os que dirão que ela não pode... Aliás, jamais diremos que ela não pode...

Fonte:Revista Bicicleta por Therbio Felipe Cezar
Fotos: Therbio Felipe Cezar

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