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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Obstinados ciclistas

No início deste ano, a capital paulista ultrapassou a marca de 7 milhões de veículos (70% deles automóveis). Isso significa média de 0,63 carro por habitante, superior ao índice americano (0,47), italiano (0,53) e japonês (0,40). A estatística pode até denotar ascensão social, mas o crescimento da frota não é acompanhado pela expansão das condições de tráfego. Em 1970, a cidade registrava cerca de 965 mil veículos para 14 mil quilômetros de vias. Quatro décadas depois, para uma frota 600% maior, o sistema viário, com 17 mil quilômetros, cresceu pouco mais de 20%.

Obstinados ciclistas
O carioca José Lobo: “Sou pontual em meus compromissos, economizo, ganho no aspecto físico e no ambiental”.

Não é pessimista constatar: o apocalipse motorizado chegou. E o inchaço no trânsito não é privilégio da maior cidade do país. A falta de mobilidade nas ruas, que “dá nos nervos” dos habitantes da capital e de seus vizinhos do ABC, Osasco ou Guarulhos, é uma doença crônica na maioria dos centros urbanos brasileiros.


Ciclista Renata Falzoni SP 2011 (foto: Arquivo Pessoal)
Renata Falzoni
É em meio a esse caos que muita gente redescobre um arcaico meio de locomoção: a bicicleta, inventada muito antes do automóvel. Que o diga a jornalista Renata Falzoni, 57 anos, apresentadora do canal pago ESPN Brasil, onde comanda um programa sobre cicloativismo: “A bicicleta é uma máquina que carrega dez vezes o próprio peso. O corpo humano gasta mais energia para caminhar do que se você pedalar o mesmo trecho. É a melhor máquina que o homem já inventou”. Para ela, a “magrela” é, mais que um veículo, um estilo de vida.

Se bem desenvolvido, o hábito de pedalar tende a se tornar gradativamente viciante. “Você chega ao trabalho com um baque de endorfina”, define a fotógrafa paulistana Laura Sobenes, de 23 anos, que vai pedalando de casa até o emprego, num percurso de cerca de cinco quilômetros. Laura habituou-se de tal modo à praticidade que pedala, inclusive, nas saídas noturnas para as baladas.

“Depois que você começa a usar com frequência, dá um tesão: não consegue mais ficar muitos dias sem pedalar, porque é saudável”, concorda Guilherme­ Schröder, 29 anos, educador e biker em Porto Alegre. O geógrafo de Aracaju Waldson­ Costa, 27, aponta igualmente o contraponto ao sedentarismo como um valor a ser destacado. “Faço o caminho da minha casa ao trabalho como academia, como atividade física.”

Mais que saúde


A bicicleta ganha cada vez mais adeptos em função, também, da relação trânsito-estresse. “O motorista desesperado joga aquela descarga em quem estiver na frente dele”, observa Renata, sobre a agressividade característica de quem dirige. José Lobo, 50 anos, cicloativista carioca que trabalha exclusivamente com a promoção do uso da bicicleta, ressalta exatamente a fluidez no trânsito como o grande benefício para quem opta por pedalar. “Consigo ser pontual em todos os meus compromissos e, por tabela, economizo e ganho no aspecto físico e no ambiental, por não estar poluindo a cidade”, lista.

Andar de bicicleta pode, ainda, transformar a própria relação da pessoa com o ambiente à sua volta. O jornalista paulistano Thiago Benicchio admite ter sido refém de carro entre os 18 e os 25 anos de idade. Passou a andar a pé, de ônibus e de bicicleta por uma questão de economia, e percebeu que era perfeitamente viável não ser tão dependente do transporte a motor.

“O carro é uma bolha que o isola”, afirma, citando a película escura e o vidro fechado como indicadores dessa antissociabilidade. “Pedalar me trouxe uma conexão mais real com a cidade. As pessoas tendem a deixar de ser cidadãs andando de carro: não conseguem ver os problemas, não interagem mais com os outros. É ótimo você poder perceber e atuar: ‘Essa árvore está podre, preciso ligar para as autoridades e avisar, senão ela vai cair’”, analisa. Thiago também considera a bicicleta oportuna em horários não convencionais. “Não há transporte público de madrugada.”

No entanto, as condições para o exercício de pedalar nas cidades brasileiras não são as mais adequadas. A transição do Brasil rural para o urbano, a partir do início do século 20, coincidiu com o boom da indústria automobilística europeia e americana. O país absorveu o fenômeno e priorizou o desenvolvimento de uma cultura viária focada nos veículos. O status de ser proprietário de um automóvel logo se tornou mais importante do que tê-lo como meio de locomoção.

Ciclista Waldson Aracaju 2011 (foto:
Waldson, de Aracaju, que tem 58 km de malha cicloviária: “Faço o caminho da minha casa ao trabalho como academia, como atividade física"

Aracaju é uma das raras capitais convidativas para pedalar, com 58 quilômetros de malha cicloviária. O ciclista Waldson Costa observa, entretanto, que muitos aracajuanos pedalam para economizar e, assim que possível, comprar uma moto. “Não têm o desejo de continuar com a bicicleta”, conta, citando que há na capital sergipana uma “febre” das motonetas de 50 cilindradas, que muitos acreditam não exigir habilitação nem emplacamento.

Idealizador da organização não governamental Ciclo Urbano, voltada para questões de mobilidade, Waldson costuma propor algumas intervenções em Aracaju em todo 22 de setembro – Dia Mundial sem Carro –, para instigar na sociedade a percepção sobre o mau uso dos espaços públicos. Na última edição, realizaram a Vaga Viva, em que transformaram duas vagas de estacionamento, alugadas ao longo de um dia inteiro, em espaço de sociabilidade, instalando cadeiras e promovendo atividades recreativas­. Waldson reconhece as boas condições cicloviárias de Aracaju, mas diz que falta muito para a cidade desenvolver todo o seu potencial. “Muitas ciclovias levam nada a lugar nenhum. Você termina a ciclovia e não sabe para onde vai, porque não existe sinalização específica.”

O carioca José Lobo relativiza essa crítica, muito comum no meio de quem pedala. “As pessoas que moram no trecho da ciclovia vão fazer vários usos: ir à casa de um amigo, à padaria. A ciclovia não necessariamente precisa interligar tudo. Ela  sempre vai ser um trecho de maior segurança”, defende. Por intermédio da ONG Transporte Ativo, Lobo presta consultoria sobre demandas cicloviárias à Prefeitura do Rio. E não tem ilusão de que todas as ideias sejam realizáveis. “A gente nunca vai conseguir abranger a cidade inteira.” E também diz não saber se as pessoas têm de contar com uma infraestrutura exclusiva para só então desenvolver o hábito de usar bicicleta.

Ciclista Laura SP 2011 (foto: © Paulo Pepe)
A paulistana Laura: “Você chega ao trabalho com um baque de endorfina”

Para a paulistana Laura Sobenes, ter ou não ter vias específicas para ciclistas é, no fundo, o menor dos problemas.

“O ponto principal é a educação no trânsito”, observa. Ela cita a própria mãe, de 57 anos, certa vez convencida a experimentar um passeio de bicicleta. Intimidada pelo desrespeito dos carros em manter a distância mínima de segurança, ela desistiu. Laura conclui: “Minha mãe faz parte da massa reprimida que, se pudesse, pedalaria 20 quilômetros por dia. Mas não pedala porque o trânsito é muito agressivo”.

Disputa pelo espaço

Na inexistência de ciclovias, é preciso pedalar nas ruas, e não na calçada, determina o Código de Trânsito Brasileiro. A questão é que o motorista de carro não encara a bicicleta como veículo digno de ocupar o mesmo espaço.

“O cidadão que se locomove por conta própria desde sempre foi considerado de segunda categoria”, critica Renata Falzoni. É por isso que muitos ciclistas se organizam nas chamadas Bicicletadas, passeios coletivos que ocorrem em muitas cidades, em geral na última sexta-feira do mês. “Quando você tem um grupo de ciclistas na rua, sai daquele manto de invisibilidade e passa a ser percebido”, explica Renata.

Na luta contra a invisibilidade, ciclistas paulistanos fizeram, em março, uma nova etapa da Pedalada Pelada, versão da World Naked Bike Ride, evento do calendário mundial do cicloativismo em que os participantes pedalam com pouquíssima ou nenhuma roupa.

“Nesse dia somos bastante vistos. Quem pedala não polui, não congestiona ruas, evita gastos de saúde pública, gera uma série de benefícios para a sociedade. Então, tiro a roupa um dia com o desejo de ser visto pela sociedade nos outros 364 do ano”, justifica Thiago Benicchio, que participou pela segunda vez do evento, assim como a colega Laura Sobenes. “Nu é como a gente se sente no trânsito”, ela completa.

Mesmo os ciclistas experientes reconhecem essa sensação de permanente vulnerabilidade. Para o gaúcho Guilherme, ter visto o atropelamento dos colegas foi traumático. Mas não o suficiente para esmorecer ou desistir de pedalar. “Acho que o movimento de pessoas usando bicicleta até aumentou”, diz. O incremento de adeptos sobre duas rodas é fundamental para criar uma nova mentalidade, segundo José Lobo. “Quanto mais pessoas pedalando, mais os motoristas se acostumam a cruzar com ciclista no meio do caminho”, projeta.


Ausência de políticas

Próximo de ser celebrado, em 22 de setembro, o Dia Mundial Sem Carro é uma data que, invariavelmente, conta com o apoio de autoridades e órgãos públicos. O que não deixa de ser uma hipocrisia, uma vez que políticas que visem a soluções para o trânsito – com prioridade para o transporte coletivo decente e eficiente – escasseiam. O resultado é que a própria sociedade civil, em massa, ignora a data. No ano passado, por exemplo, o 22 de setembro não amenizou o congestionamento de São Paulo. Às 19 horas, a lentidão era de 112 quilômetros  – média idêntica à de um dia comum.

Também em 2010, a cidade de Curitiba­ organizou a Conferência Internacional das Cidades Inovadoras, com o intuito de apresentar alternativas urbanas sustentáveis. Na ocasião, o prefeito Beto Richa­ foi questionado por um grupo de ciclistas pelo fato de o investimento em ciclovias no orçamento municipal prever R$ 2,27 milhões, enquanto a aplicação real dos recursos foi recalculada para R$ 26 mil.

Assim, é natural que iniciativas privadas tentem cobrir lacunas da administração pública. O Plano das Bikes Brancas, inspirado em experiência similar de Amsterdã, consiste em espalhar protótipos de bicicletas pela capital paranaense, permitindo aos interessados, cadastrados por e-mail, o uso gratuito de uma magrela por até uma semana. Em São Paulo existem dezenas de organizações. Uma delas, o projeto Bike Anjo, reúne ciclistas experientes que, voluntariamente, auxiliam pessoas que queiram começar a pedalar na cidade, indicando trajetos e orientando sobre cuidados, direitos e deveres no trânsito.

“Achei a ideia do Bike Anjo superlegal e disse que queria ajudar, porque quero que cada vez mais pessoas pedalem”, afirma a secretária bilíngue Célia Choairy­ de Moraes, ciclista desde 2007 e voluntária no projeto.

Ciclismo Barcelona_2011 (foto: © Paulo Donizetti de Souza)
 O sistema Bicing, de Barcelona, é referência mundial. O usuário utiliza seu cartão para destravar uma bicicleta em uma estação e tem até 30 minutos para devolvê-la em qualquer outra. A taxa, anual, é de € 30. A capital catalã tem ciclovias e ciclofaixas (“corredores” pintados no chão de ruas e de calçadas).
 
Nem a Copa em 2014, nem os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro em 2016 parecem mobilizar autoridades para uma repaginação da infraestrutura viária que deixe legados. Seria um grande desperdício de oportunidade. Barcelona, por exemplo, não inventou seu moderno sistema cicloviário em função da Olimpíada de 1992. Mas a preparação daquela edição dos Jogos serviu para a cidade superar seu problema crônico de trânsito ao modernizar a rede de transporte coletivo. A superação do status de decadente, a retomada da vocação cosmopolita e a intensificação do uso da bicicleta, na década passada, são boas consequências de um planejamento urbano que foi além do evento esportivo.

A arquiteta Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, observa que em algumas cidades-sedes de jogos da Copa – como Curitiba, Belo Horizonte, Rio de  Janeiro – o planejamento da infraestrutura­ voltada para a mobilidade tem bons projetos  de expansão do transporte de massas, como corredores de ônibus e de coletivos leves sobre trilhos (“Tucanaram o bonde”, brinca). E que em outras cidades, como Fortaleza, há também projetos de expansão do sistema viário.  Mas vê esses planejamentos com ressalvas.

“No geral, a infraestrutura viária visando 2014 está sendo pensada em função dos deslocamentos entre aeroportos e hotéis e os locais dos jogos, mas não especificamente em função de deixar um legado compatível com as necessidades e prioridades da população posteriores aos eventos”, diz Raquel.

De acordo com a urbanista, não houve nos últimos anos – nem há num horizonte próximo – um planejamento capaz de reverter a matriz do transporte urbano. As cidades, segundo ela, priorizam o transporte individual em detrimento do coletivo, e o deslocamento motorizado em detrimento da mobilidade de pedestres e ciclistas. “E já está absolutamente comprovado que, dessa forma,  não há solução. A ampliação da mobilidade passa pela adoção de um sistemas integrado, de massa, multimodal, articulando corredores de alta capacidade e de baixa capacidade (como as vans). Estamos subordinados a uma visão segundo a qual preocupacão com transporte é coisa de pobre”, critica.

Em São Paulo, segundo o vereador e ex-presidente da Companhia de Engenharia de Tráfego Chico Macena, a prefeitura tem pelo menos 522 quilômetros de ciclovias planejadas para 2012. “Mas isso é fruto mais de reivindicações de ciclistas do que filosofia de gestão”, observa. Em 2007, trajetos feitos pela integração de bicicleta e metrô foram permitidos pelo Sistema Cicloviário do Município, com a criação de bicicletários e vagões especiais. Mas esses sistemas atendem mais a uma demanda pelo uso de bicicleta como lazer do que como opção de locomoção alternativa ao carro.

A vulnerabilidade dos ciclistas fica mais exposta quando termina em acidentes  como o atropelamento em série em Porto Alegre ou tragédias como a que vitimou  o empresário Antonio Bertolucci, atingido por um ônibus. De acordo com o publicitário Tito Bertolucci­, o pai já havia se acidentado outras vezes. “Ele tinha uma condição legal, podia pegar um motorista que o levasse com a bicicleta para pedalar na Cidade Universitária. Mas não gostava de circuitos fechados. Gostava de ver o que estava acontecendo no cotidiano da cidade.”

Por: Fábio Fujita
Colaborou Xandra Stefanel

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